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Antes de haver o azul

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Iluminura de Amanda Cass
"A natureza é avara em azuis 
São muito poucos os frutos azuis. 
Muito poucos os alimentos azuis”
Título da postagem e frase de Eduardo Agualusa em sua coluna no Jornal O Globo e tudo mais que segue, na íntegra, inteiro de mim, sinônimos que somos, eu e o azul, a cor, o mar, o céu, o amar. Agualusa tá na lista de livros por ler, por hora lendo a coluna, em par muitas vezes com uma amiga Gris, anis e colorê.
“Há poucos dias descobri na minha biblioteca um livro cuja existência desconhecia. Acontece muito. Vou à procura de um determinado título. Sei exatamente onde deveria estar, mas não o encontro. No lugar dele descubro um outro. Neste caso foi um grosso volume, em francês: “Couleurs, Pigments et teintures dans les mains des peuples”, de Anne Varichon. Trata-se de um ensaio sobre as cores e o seu significado ao longo da História.
A páginas tantas, Varichon recorda que para os antigos gregos o mar era verde, marrom ou cor de vinho. Não havia uma palavra para designar o azul celeste. Também o céu não era azul. Poetas descreviam-no como rosado, ao amanhecer; incendiado, ao crepúsculo; leitoso, nas melancólicas manhãs de inverno. Teofrasto, que escreveu sobre quase tudo, e também assinou um estudo sobre cores, corantes e essências tintóreas, nunca se referiu à cor azul. No Antigo Testamento não existe menção a essa cor. Na pintura ocidental o mar só começou a ser representado a azul no século XV. Até então era representado por diferentes tons de verde. Os maoris, ainda segundo Anne Varichon, classificavam o céu em função das nuvens que o atravessavam. Um céu sem nuvens não era azul. Era “um dia bom”.
Finalmente surgiu, em diversas línguas, a palavra azul, e logo o mar ganhou essa cor e o céu também. Poderíamos deduzir a partir deste detalhe histórico que são os nomes a dar existência às coisas. Tal tese está, aliás, em consonância com o que afirma a Bíblia: “No princípio era a palavra e a palavra estava com Deus e a palavra era Deus.”
Vale a pena lembrar que a poesia surgiu ligada a rituais de magia, na forma de canções e evocações. Os magos convocavam espíritos e objetos através da palavra. Temos aqui, mais uma vez, o verbo na origem do mundo.
Agrada-me a ideia. Imagino uma sociedade secreta de poderosos demiurgos. Ei-los que chegam a um vale magnífico, bradam a palavra secreta, e logo o céu se tinge de um azul luminoso e inequívoco. Murmuram uma outra e surge o primeiro arco-íris do mundo; falam de novo, numa imperiosa gargalhada de luz, e brota, presa ao tronco rugoso de uma laranjeira, a orquídea original. Vejo-os atravessando os demorados séculos, confundindo-se com as multidões, na sua fantástica missão. Dizem pizza e sai do forno a primeira margarita. Dizem gravata e logo um funcionário triste, num triste escritório de um subúrbio triste, leva as mãos suadas ao pescoço para aliviar o nó da inútil peça de vestuário.
Aqui e ali, talvez os meus imaginários demiurgos tenham tropeçado numa palavra um pouco mais complicada e feito emergir do nada um prolongado erro. Por exemplo, o ornitorrinco. O ornitorrinco que me perdoe, mas suponho-o obra de um demiurgo gago, nervoso ou um pouco inexperiente. Ao ver o ornitorrinco, o Demiurgo Chefe chama o Demiurgo Amador:
“E isto?” — pergunta, apontando o espantoso estropício.
“Isto, che-che-chefe, é um oto-oto-otorrino...”
Pluff! Logo ali se materializa o primeiro otorrinolaringologista da História. O homem olha perplexo para os dois demiurgos. Olha ainda mais assustado para o ornitorrinco, este olha para ele, num susto idêntico, e ambos correm a ocupar o respectivo lugar no curso dos acontecimentos.
A natureza é avara em azuis. São muito poucos os frutos azuis. Muito poucos os alimentos azuis. A natureza é pródiga em substâncias a partir das quais é possível extrair pigmentos amarelos, negros, vermelhos, mas são muito raras aquelas que permitem obter tintas azuis. O Ocidente importou o azul do Oriente. Os pintores afegãos terão sido os primeiros a moer o raro lápis-lazúli, por volta do século V, de forma a obterem um pigmento de um azul intenso e luminoso, ao qual os pintores venezianos deram o nome de azul ultramarino. Foi, durante séculos, considerado a cor mais bela - era também a mais cara.
O lápis-lazúli é uma rocha composta por vários minerais. Lápis, em latim, significa rocha. Lazúli chegou ao latim vindo do árabe; já o termo árabe veio do persa e este do sânscrito. A palavra azul vem, naturalmente, de lazúli. Na maior parte das línguas europeias, o vocábulo azul parece provir do alemão antigo, blenda, que designava um mineral brilhante:bleu (francês), blau (alemão), blu(albanês), blue (inglês, basco e esloveno), etc..Em qualquer dos casos tratam-se de palavras relativamente novas, o que parece comprovar a curiosa tese de Varichon. Verdade ou não, é uma bela tese. Fico pensando nas cores que se escondem entre nós, esperando apenas pela palavra certa para então se abrirem ou deflagrarem.”

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