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Dos mal feitos

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Então, quem nunca fez uma coisinha mal feita, por pressa, por não tá num bom dia, por não tá enxergando direito, estar com sono, cansada. A pessoa aqui faz muitas, umas concerta outras deixa mal feitas pelos caminho e assim vou indo. Tanto mexi no post de hoje cedo, pra melhorar a foto e o texto, que exclui o post com tudo. Foi! Quem viu viu, quem comentou li e para não ficar a segunda em brancas nuvens, segue uma contação de Clarice Lispector.
“Havia em Recife inúmeras ruas, as ruas dos ricos, ladeadas por palacetes que ficavam no centro de grandes jardins. Eu e uma amiguinha brincávamos muito de decidir a quem pertenciam os palacetes. "Aquele branco é meu.""Não, eu já disse que os brancos são meus." Parávamos às vezes longo tempo, a cara imprensada nas grades, olhando.
Começou assim. Numa dessas brincadeiras de "essa casa é minha", paramos diante de uma que parecia um pequeno castelo. No fundo via-se o imenso pomar. E, à frente, em canteiros bem ajardinados, estavam plantadas as flores.
Bem, mas isolada no seu canteiro estava uma rosa apenas entreaberta cor-de-rosa-vivo. Fiquei feito boba, olhando com admiração aquela rosa altaneira que nem mulher feita ainda não era. E então aconteceu: do fundo de meu coração, eu queria aquela rosa para mim. Eu queria, ah como eu queria. E não havia jeito de obtê-la. Se o jardineiro estivesse por ali, pediria a rosa, mesmo sabendo que ele nos expulsaria como se expulsam moleques.
Não havia jardineiro à vista, ninguém. E as janelas, por causa do sol, estavam de venezianas fechadas. Era uma rua onde não passavam bondes e raro era o carro que aparecia. No meio do meu silêncio e do silêncio da rosa, havia o meu desejo de possuí-la como coisa só minha. Eu queria poder pegar nela. Queria cheirá-la até sentir a vista escura de tanta tonteira de perfume.
Então não pude mais. O plano se formou em mim instantaneamente, cheio de paixão. Mas, como boa realizadora que eu era, raciocinei friamente com minha amiguinha, explicando-lhe qual seria o seu papel: vigiar as janelas da casa ou a aproximação ainda possível do jardineiro, vigiar os transeuntes raros na rua. Enquanto isso, entreabri lentamente o portão de grades um pouco enferrujadas, contando já com o leve rangido. Entreabri somente o bastante para que meu esguio corpo de menina pudesse passar. E, pé ante pé, mas veloz, andava pelos pedregulhos que rodeavam os canteiros. Até chegar à rosa foi um século de coração batendo.
Eis-me afinal diante dela. Para um instante, perigosamente, porque de perto ela é ainda mais linda. Finalmente começo a lhe quebrar o talo, arranhando-me com os espinhos, e chupando o sangue dos dedos. E, de repente, ei-la toda na minha mão. A corrida de volta ao portão tinha também de ser sem barulho. Pelo portão que deixara entreaberto, passei segurando a rosa. E então nós duas pálidas, eu e a rosa, corremos literalmente para longe da casa. O que é que fazia eu com a rosa? Fazia isso: ela era minha. Levei-a para casa, coloquei-a num copo d'água, onde ficou soberana, de pétalas grossas e aveludadas, com vários entretons de rosa-chá. No centro dela a cor se concentrava mais e seu coração quase parecia vermelho.
Foi tão bom...Nunca ninguém soube. Não me arrependo: ladrão de rosas e de pitangas tem 100 anos de perdão. As pitangas, por exemplo, são elas mesmas que pedem para ser colhidas."

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